quarta-feira, 27 de junho de 2012

IVO BARROSO: A VOZ BRASILEIRA DE EDGARD ALLAN POE



Por Pedro Paulo Rosa
Foto: Divulgação
Revisão textual: Paulo Cappelli


Ivo Barroso, um dos maiores tradutores brasileiros, nos dá o prazer da conversa. Entre tantos assuntos, falamos sobre como ele encontrou a vocação para traduzir clássicos. Por exemplo, Edgar Allan Poe. Ivo nos conta também como saiu da distante Ervália, em Minas Gerais, e criou raízes no Rio de Janeiro. 


O HÉLIO --- Como começou a se interessar pela literatura? Você é mineiro de Ervália. O Rio de Janeiro entrou na tua jornada quando?

IVO BARROSO: Viemos para o Rio nos tempos da guerra (1944/45), pois os filhos precisavam estudar. Em Ervália, onde passei minha infância e meninice, já lia muito, desde volumes inteiros do Tesouro da Juventude a obras mais sérias como as coleções de Machado de Assis e Humberto de Campos.

O.H.: Traduzir é para poucos. Quais seriam as principais nuances que um tradutor necessita desenvolver?

I.V.:  Certamente o estudo e conhecimento de línguas, mas reconheço que o tradutor pressente em si desde o início uma tendência para “decifrar” o que está escrito em outra língua. Recordo-me que “lia” inglês e francês antes de começar o aprendizado dessas línguas, à base de uma curiosidade por assim dizer sherlockiana.

O.H.: Fale um pouco da influência do Allan Poe na sua vida.

I.V.:  Poe não exerceu propriamente influência sobre os meus escritos, mas foi uma descoberta literária de grande importância. Eu já me achava empenhado na tradução de livros quando descobri a tradução de O Corvo feita pelo Milton Amado; impressionado pelos resultados nela obtidos, animei-me a traduzir coisas mais difíceis, principalmente em poesia.


O.H.: Quais outras literaturas o Ivo Barroso se entrega?

I.V.: Conheço bem as literaturas de língua espanhola, inglesa, francesa, italiana e alemã. Tenho dificuldade em falar todas elas, mas traduzir não tem muita relação com a expressão oral. É um trabalho quase em segredo, sem que seja murmure uma palavra sequer. Há, entre nós, geniais tradutores (do russo, principalmente) que não sabem falar sequer uma frase nesse idioma.

O.H.: A força de transformação social do objeto livro e do que ele suscita é evidente. Como é isso pra você, de que maneiras você fora transformado por este objeto?

I.V.:  O livro é um instrumento e às vezes até um companheiro “físico”; sua força de sedução é inapreensível. Recordo-me de um leitor que veio me agradecer pela tradução de Demian (que traduzi para me livrar de um complexo de timidez), dizendo que o livro tinha mudado sua vida.  

O.H.: Como analisa a tradição e a atual geração dos tradutores literários brasileiros?

I.V.: Sempre tivemos grandes tradutores no passado, principalmente de poesia: Carlos Portocarrero, Guilherme de Almeida, Geir Campos, Manuel Bandeira, Abgar Renaud, Sergio Milliet etc etc. Creio que já ultrapassamos o tempo em que o tradutor era um mero desconhecido. Hoje o leitor já  se preocupa em saber quem traduziu o livro que vai comprar, certo de que o conceito do tradutor é garantia de qualidade daquilo que vai ler. Nomes como os de Leonardo Froes, Ivan Junqueira, Denise Bottmann, Sergio Pachá são atestados de excelência. 

O.H.: Fala um pouco do atual livro pra gente.

I.V.: O "Corvo e suas traduções" é um ensaio que escrevi nos longínquos 1994 e publiquei na revista Poesia Sempre da Biblioteca Nacional. Por instigação de Carlos Heitor Cony desenvolvi a tese (que busca provar a superioridade da tradução de Milton Amado sobre as demais) e juntei-lhe as sete traduções mais reputadas do poema. Duas edições anteriores já estavam há muito esgotadas, Saiu agora esta 3ª. pela Editora Leya, de São Paulo, inclusive com a tradução francesa de Didier Lamaison, que enriquece o livro. 








O.H.: Sobre o seu estilo e estética artísticos, sabe-se que já pertenceu ao movimento concretista que tinha no suplemento literário do Jornal do Brasil. O que mudou no espectro, na construção e demonstração do seu estilo e estética?

I.V.: Tive uma fase concretista e incluo os (que considero) meus melhores poemas concretos no livro A Caça Virtual e outros poemas, de 2001. Mas acho que a experiência não passou mesmo de uma fase e estranho ver que até hoje alguns jovens ingênuos ainda escrevem poemas “concretistas” pensando estar fazendo o que há de mais avançado em poesia. A grande poesia atual continua a poesia de sempre, falando ao leitor, procurando emocioná-lo sem comovê-lo, compartilhar de suas angústias e interrogações sobre a vida e o ser humano.  Estou nesta linha.  


O.H.: Você teve a chance de traduzir obras de autores Prêmios Nobel de Literatura, na época em que foi convidado por Paulo Rónai, não é isso? Qual experiência de tradução lhe marcou mais?

I.V.: Traduzi obras por desafio, para ganhar dinheiro e para minha satisfação pessoal. Todas essas experiências nos marcam ou nos enriquecem, contribuem para a nossa formação. Mas houve traduções feitas por amor, ou seja, por dedicação absoluta sem pensar em publicação e muito menos em remuneração, que me trouxeram aquela euforia inigualável que é  própria do ato criativo. 


O.H.: Ivo, como podemos alcançar, no Brasil, um maior número de leitores plenos e tendo a juventude interessada na leitura e escrita?

O.H.: O leitor pleno é o leitor culto. É só dar cultura ao povo. O que devia ser um dos objetivos dos nossos governantes (mas cultura não dá votos, como por exemplo o futebol)

Agradecimentos: editora Leya 

sexta-feira, 8 de junho de 2012

EDGARD LEITE: CRESCER E PRODUZIR UM SENTIDO



Por Pedro Paulo Rosa 
Foto: Arquivo pessoal 
Revisão textual: Paulo Cappelli


Existe em alguns, o costume de hierarquizar os acadêmicos, distanciando seus discursos e pensamentos da grande maioria. Em busca de popularizar e minimizar com essa prática, O HÉLIO se encontrou com Edgard Leite, formado em História pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e orientado, em seu doutorado, por Ciro Flamarion Cardoso. O professor, historiador Edgard é também comentarista convidado  da Globonews e membro do Conselho Acadêmico do Centro de História e Cultura Judaica. Atualmente, está responsável pelo projeto de integração acadêmica entre a UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e a Universidade de Sheffield (Inglaterra) e Goa (Índia). Em nosso papo, falamos sobre amor, sobre o ofício de historiador e as coisas que inquietam nosso entrevistado. Passamos nossa conversa pelo tórrido e singular ano de 2011, que foi atravessado, entre outros ocorridos, pela Primavera Árabe. 

O HÉLIO.: Escolha da profissão de historiador. Como isso se deu em sua vida? Percebeu essa vocação de que maneira?

EDGARD LEITE.: Eu não tinha uma certeza sobre minha vocação até o sétimo período da faculdade. No fundo o que eu gostava era de literatura, poesia, artes plásticas. O que me atraía em História era basicamente o mistério que estava contido na passagem interminável dos instantes e a própria natureza enigmática do tempo. Isso nunca foi diretamente respondido ou abordado no curso em si, o que me levou, algumas vezes, a cogitar em fazer Letras ou Filosofia. Mas essas questões estavam, no entanto, presentes em toda discussão que se travava sobre qualquer assunto em História, mesmo que não fossem exteriorizadas.  Eu vinha também de uma família muito engajada politicamente, e, na época em que eu entrei no curso, eu tinha, ao que me lembre, pelo menos dois tios presos políticos e diversos parentes exilados. Isso reforçava em mim a crença de que era necessário entender melhor como é que chegávamos a um determinado momento do tempo de uma determinada forma, e não de outra, se é que isso podia ser realmente mensurado. O mistério contido nessa questão também me intrigava. Além do mais, eu tinha certas limitações pessoais que dificultavam muito as possibilidades de ter amigos ou grupos e me tornaram, ao longo da adolescência, um leitor, basicamente, e sentia-me assim muito à vontade em ambientes onde o estudo era o principal meio pelo qual as identidades eram construídas. Portanto, quando o curso terminou, eu estava muito convicto de que realmente eu tinha um caminho viável de realização pessoal no campo da História, muito embora eu não considerasse que as questões que tinham me conduzido até ali pudessem ser resolvidas, de alguma forma, por qualquer estudo realizável.  Então nunca deixei de ter um sentimento de que o mistério que eu procurava resolver na minha escolha, não poderia realmente ser resolvido, embora, por outro lado, acreditasse que eu poderia sim aproximar-me dele infinitamente, o que me pareceu bastante satisfatório. Assim nunca tive um tema específico, mas um problema de ordem - diríamos filosófica ou metafísica - que passou a estar presente em todos os meus estudos de uma forma ou de outra.

O.H.: A figura que a sociedade constrói do historiador, sob o seu ponto de vista, ainda é um mito ou banalizada?

E.L.:  O historiador é um profissional centrado na reflexão sobre esse fenômeno imaterial que é o passado, a partir de seus vestígios materiais - que sobrevivem no presente. Ele tem uma personalidade particular, voltada para essa sensibilidade. É claro que considerando que o presente é fruto de acontecimentos passados, o historiador tem uma inflexão política em tudo que faz, pois os atos do presente justificam-se em função de eventos anteriores, que ocorreram ou não. Sua tendência a ser politizado e envolvido com o problema das justificativas dos atos humanos é total, em consequência. O historiador esquerdista é, no entanto, uma redução, pois não se trata, o esquerdismo, de uma atribuição natural do pesquisador da história, mas apenas uma determinada opção de entender o passado- dominante aqui entre nós em determinado período histórico. Da mesma maneira o historiador antiquário, profundamente impactado e submetido ao enigma do passado não é modelo do que seja um historiador. Na verdade, na nossa sociedade contemporânea, o historiador ou o professor de história é apenas um técnico, que lida com o passado, traduzindo-o e explicando-o para aqueles, os vivos, no presente.


Edgard Leite com o neto de Gandhi, Rajmohan Gandhi


O.H.: Como popularizar o ofício do historiador? 

E.L.: Muitas pessoas tem vocação para o ofício de historiador, mas, infelizmente, a nossa sociedade não valoriza materialmente essa profissão, já que o interesse pelo passado não é generalizado em sociedades jovens, ou porque ao poder não interessa favorecer interpretações sobre as quais o sistema não possa ter controle. Mas o fundamental seria elevar a valorização financeira, principalmente do magistério, a fim de atrair mais pessoas interessadas, já que o importante em qualquer profissão na sociedade capitalista é que esta forneça os meios para a sobrevivência daquele que a exerce.

O.H.: Um alpinista se emociona com a altura e a paisagem. Para o historiador, como é lidar com a emoção?

E.L.: Não posso falar sobre os historiadores em geral, pois acho que cada um retira, do que faz, inúmeras e particulares satisfações, todas legítimas e importantes. Para mim, no entanto, o que importa nas minhas pesquisas é a proximidade do mistério, mistério que está contido em tudo que os homens fazem, em todas as suas esferas da atuação e existência: o mistério da morte, por exemplo, ou o enigma do porque existimos e a grande turbulência que tudo isso causa nas nossas atitudes e existências. Tenho muita emoção em perceber isso no passado, nos documentos, nos monumentos, nas coisas que nos chegam de outros tempos, e fico encantado ao me dar conta de quão importantes são todas essas idéias e atitudes para aqueles que as vivem e realizam e ao mesmo tempo quão menores são do ponto de vista maior, do ponto de vista da história e da nossa própria inserção no universo. Isso, para mim, é maior fonte de emoção nas minhas pesquisas.

O.H.: Fale um pouco sobre as pungentes transformações ocorridas ao longo de 2011, em destaque, a Primavera Árabe.

E.L.: A “primavera árabe” é, ao meu ver, um desdobramento, entre inúmeros já verificados, bem característico das impossibilidades das sociedades muçulmanas em lidar com as formas de gestão econômica e política emanadas da Europa e dos Estados Unidos. Todas muito fortes e cada vez mais predominantes nos corações e mentes da humanidade. A resistência do islamismo a formas mais imanentes de existência, ao direito contratual -humano- do Ocidente, ao individualismo sensualista ocidental, sua oposicão à idéia de que a história dos homens pode ser compreendida a partir dos documentos humanos, tudo isso e outras atitudes análogas, os colocam numa situação muito difícil quando querem, simultaneamente, ter as mercadorias, ou melhor, o dinheiro com as quais se pode comprá-las, e preservar sua visão tradicional das coisas. Eles rodam em círculos, incapazes de realmente introduzir transformações significativas no seu projeto de ser e apostam no colapso global do Ocidente, coisa que não parece possível tão cedo, pois nos últimos cinco séculos a lógica capitalista só se desenvolveu, os cercou e os estrangulou. A dita “primavera” é uma tentativa de salvaguardar identidades ameaçadas em uma crise cada vez mais acentuada. Na verdade, tentam desesperadamente adiar o seu próprio colapso enquanto civilização. O Ocidente destruiu muitas culturas, nos últimos quinhentos anos, e continua na sua marcha de assimilação e incorporação. Por quanto tempo os muçulmanos resistirão é impossível saber, mas desde o século XIX eles dão sinais de exaustão.

O.H.: Como analisa, historicamente, a maneira pela qual estamos lidando e gerindo o mundo nesses primeiros 12 anos do século XXI?

E.L.: Bem, os últimos trinta anos foram os anos de maior crescimento econômico de toda a história. Nunca se transformaram tantos recursos naturais em mercadorias, nunca tantos tiveram tanto acesso a tantas coisas, nunca se viveu tanto e tão bem, nunca se produziu tantos alimentos, nunca a proporção de crescimento populacional foi tão elevada, nunca a informação foi tão disseminada, nunca se produziu tanto de tudo -ideias, valores, sentimentos e projetos.  O custo disso sobre o meio ambiente é difícil de ser estimado. A forma como isso é gerenciado do ponto de vista das finanças é, como sempre foi - em se tratando da gestão desse elemento que chamamos de dinheiro-, complexa e usualmente irracional e, portanto, perigosa. Os efeitos disso sobre a percepcão que os seres humanos têm sobre o mundo também são diversos e plurais - imprevisíveis.  Todos se preocupam porque, de fato, as expectativas humanas costumam se desenvolver numa velocidade muito superior à do desenvolvimento da sua capacidade material de satisfazê-las. Quando há uma distância muito grande entre uma e outra a sociedade afunda, entra em colapso. A questão é saber quando se alcançará esse limite. Muitos acham que ele está muito distante ainda. Ainda há mão de obra a ser incorporada, minas a serem descobertas, muita terra a ser plantada, muito petróleo a ser extraído. Outros acham que esse limite está próximo e que a nossa capacidade tecnológica atual não está conseguindo satisfazer mais nossas demandas numa progressão razoável. Mesmo com toda a terra, e petróleo e etc. disponíveis. Talvez ambos estejam certos, já que tudo é possível. Não sei se vivemos o limiar do “grande ajuste”. Há a próxima revolução da robótica em curso, ainda há formas de impedir o colapso total da economia européia, sacrificando suas áreas mais pobres. Mas sem dúvida, tudo na história é perigoso. Como escreveu Heráclito: “a morada do homem é o extraordinário”.

O.H.: Atualmente, o que mais lhe inquieta no processo histórico, na vida?...

Edgard Leite em um momento informal

E.L.:  Bem, desde 2000 tenho estudado os processos de secularização no Ocidente e o gradual desaparecimento do direito divino e do direito natural nas sociedades ocidentais. Esse hoje é um dos meus temas principais. As implicações disso são interessantes e fundamentais para entender o desenvolvimento jurídico dos últimos duzentos anos e igualmente a natureza das crises interculturais. Na vida cada vez mais me interessa o tema do amor. Acredito no amor como uma força maior da existência humana, pelo menos da minha. É o que me move e sem ele nada que faço faz qualquer sentido. Me inquieta sua natureza, dinâmica e, eventualmente, realidade. Pelo que sou, e pelos meus limites, entendo que o encontro com o próximo é o maior desafio da vida e me dedico muito a entender a sua dinâmica - e a encontrar.

O.H.: Quais os conselhos ou dicas daria a jovens que gostariam de se formar em História?

E.L.:  Aos meus alunos sempre recomendo que estudem muito e se apliquem aos temas que gostam. Leiam bastante sobre tudo e adquiram cultura geral para poder inserir todo interesse particular em quadros mais gerais. Acredito muito que todo ser humano é brilhante. Que não há diferença entre suas capacidades, mas que cada um deve encontrar aquilo que lhe é próprio para crescer e produzir um sentido para sua própria vida.