sábado, 12 de maio de 2012

LOURENÇO MUTARELLI: trabalho é como cutucar ferida


Por Pedro Paulo Rosa
Foto: Ravini Padilha
Revisão textual: Paulo Cappelli


            O escritor Lourenço Mutarelli – autor de vastos títulos e do célebre “O Cheiro do Ralo”, adaptado para os cinemas e tendo como protagonista o autor Selton Mello – fala ao O HÉLIO com exclusividade sobre o seu novo livro de quadrinhos, “Quando Meu Pai se Encontrou com ET fazia um Dia Quente”

LOURENÇO MUTARELLI --- Acho que cada vez mais o silencio...está na minha obra. A dificuldade de comunicação também é uma forma de se comunicar. Isso tudo tem muito a ver com o vazio, como você me perguntou antes de ligar o gravador. Tem muito a ver com esse vazio e com o que a gente forja para tentar cobrir. É como areia movediça que vai te engolindo. Você vai sempre querendo preencher este vazio, capturá-lo.

O HÉLIO.: E onde está esse vazio no atual livro?

LM .: É... esse vazio. (Suspiros) Acho que ele está em todas as personagens dos meus livros. É essa solidão que a gente tenta quebrar e que, na verdade, muitas vezes conseguimos.

O.H.: Você tem algum personagem xodó?

LM.: Tem alguns livros de que gosto. Gosto muito do personagem do “Cheiro do Ralo”; talvez até pela personificação que o Selton (Mello) deu nele. Tenho muito carinho, mas acho que é muito pela vida que vi o personagem ganhar. Foi uma coisa muito interessante, ganha uma dimensão maior do que tudo o que poderia ser. Não me importo de não gostar de alguns que escrevi. Acho que tem que ter livros ruins para você chegar em um melhor. Mas, tem alguns que... Tem o Diomedes, personagem de quadrinhos que tive. É uma criação que tenho muito carinho.

O.H.: Por quê?

LM.: Foi o único personagem com quem sonhei. De quem tive saudade. Pensei muito nele.

O.H.: Além da vida, suas influências você pode dizer que foram quais?

LM.: Tive várias influências ao longo da vida. Nem sempre elas se refletem no meu trabalho. Mas, algumas me estimulam a tentar fazer direito. No começo, quem me levou para literatura, me influenciou muito mesmo, foram os livros de Kafka (Franz).

O.H.: “Carta ao Pai”, por exemplo, foi um livro que te marcou?

LM.: Interessante você ter escolhido citar essa obra. Esse livro demorei para ler; li justamente quando minha mulher estava grávida. Acabei tendo a visão contrária. Entendi muito mais o pai do que o filho. Acho toda aquela revolta e reclamação do filho, uma reclamação de quem nunca foi pai. É de quem só consegue ver o outro lado. Tem coisas que ele não consegue entender a limitação do pai, a precariedade daquele pai. Então, foi um livro que li na hora errada. Tinha que ter lido antes de pensar em ser pai.

O.H.: Qual é o papel da literatura, Lourenço, nesse mundo onde o livro ainda é tão caro?

L.M.: Olha, livros são caros... Minha mulher, por exemplo, é de uma origem muito simples, mas ela sempre leu muito em bibliotecas públicas. Acho que é questão de você ir atrás também. Se você pensar que 50% é da livraria, 10% é do autor e 10% é de quem fez...Então, esse caro é até para quem faz também. Tudo transforma. Todo mundo tem um cerne, uma semente que pode florescer. Para alguns é a literatura, para outros pode ser o basquete. Acho que não pode ser só uma coisa ou outra.  

O.H.: E o seu processo de criação, como é? Você tem hábitos específicos?

L.M.: Olha, Pedro, é muito diferente quando trabalho quadrinho, quando trabalho livro e quando escrevo para teatro. Este livro em especial, quando me veio a ideia original, antes de terminar o roteiro, escrevi a espinha dorsal dele e comecei a desenhar. E como era um trabalho sobre memória, no momento já tinha um corpo de imagens, sentei ali e escrevi tudo. O processo caótico me ajudou a ir amadurecendo.

O.H.: Como o Lourenço Mutarelli enxerga eventos grandes em homenagem ao livro. Exemplo: bienais, feiras etc?

L.M.: Eu gosto muito...gosto muito...como espectador mesmo. Acho que é muito bom você ter essas oportunidades de encontro. Adoro. Tem leitores que tem uma relação excelente comigo, que me conhecem demais mesmo. Sempre escrevo gratidão nos meus autógrafos. É bom ver os leitores voltarem no próximo livro.



O.H.: Tem alguma produção alternativa de livro, em São Paulo ou no Rio, que tenham lhe arrebatado?

L.M.: Tenho visto algumas produções independentes com uma qualidade incrível. As produções independentes são fundamentais, Pedro. As grandes produções estão caindo. No independente, é onde você tem maior grau de experimentação. A produção independente é o caminho e o fim. Sonho, um dia, em voltar a fazer fanzine de novo. Você faz o que você quer. O meu atual livro acho que, no fundo, fala sobre a memória. É um personagem que não viveu uma história, que conta uma história que o pai dele contou dez anos antes. Então, é ele tentando reconstruir a história que ele escutou do pai anos atrás. Esse livro é para ver como a memória nasce no mesmo lugar da ficção.

O.H.: Você lida bem com a fama?

LM.: (Risos) Felizmente não tenho fama. Fico constrangido quando sou reconhecido na rua, no metro. Fico embaraçado. Não tenho problema de encontrar leitores em palestras. Mas, quando me veem na rua, me constrange. É estranho para mim. A rua é meu laboratório.

Capa do novo livro em quadrinhos de Lourenço Mutarelli 


O.H.: Com a sua escrita, você preenche àquele vazio?

L.M.: Pedro, a minha escrita me leva muito mais para o vazio do que me resolve. Esse vazio me some, é preenchido, quando estou com a minha mulher, meus filhos e meus gatos. Mas, o meu trabalho é como catucar ferida. Enquanto estou lá, cutuco minhas feridas.

O.H.: E a ausência desse livro é a ferida de uma memória de filho?

L.M.: Podemos dizer que sim. O menino conta essa memória já como homem feito. Ele leva o seu pai para um asilo, por decisão da irmã. O filho é só um condutor. Um mensageiro. Dez anos depois, ele vai rever essa história de outra forma. Acho que ele percebe o quanto ele foi superficial e fútil nesse contexto. Mas, será assim sempre. A nossa existência é fútil e superficial. Seremos sempre assim. E a vida é isso.


Agradecimentos: Livraria Folha Seca